União das Mulheres<br>na Comuna de Paris<br> - A organização das mulheres<br>na primeira revolução proletária da História

Isabel Cruz

Elas estão em todo o lado na de­fesa da Co­muna e da re­vo­lução – nas ofi­cinas, nas am­bu­lân­cias e can­tinas, nos hos­pi­tais, clubes e as­so­ci­a­ções, na re­dacção de jor­nais e co­mités, nas es­colas e nas bar­ri­cadas – Chignon, Collin, Di­blanc, Dmi­trieff, Ja­clard, Jac­quier, La­chaise, Le­loup, Le Mel, Mar­cand, Mar­chais, Mi­chel, Per­rier, Re­clus, Sué­tens, Ver­dure, são al­guns ape­lidos das cen­tenas que par­ti­ci­param ac­ti­va­mente na pri­meira re­vo­lução pro­le­tária. La­va­deiras, cos­tu­reiras, es­co­veiras, en­ca­der­na­doras, can­ti­neiras, sa­pa­teiras, com­ba­tentes e ar­ti­lheiras, so­cor­ristas e en­fer­meiras, ope­rá­rias, mes­tres, in­te­lec­tuais e até aris­to­cratas, sem ex­cepção, foram con­de­nadas, fu­zi­ladas, de­por­tadas, exi­ladas, ca­lu­ni­adas.

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Pouco dias de­pois da pro­cla­mação da Co­muna, tra­ba­lhava-se para cons­ti­tuir a (também) pri­meira or­ga­ni­zação de mu­lheres da His­tória. A União das Mu­lheres foi uma das mai­ores as­so­ci­a­ções da Co­muna, dis­tinta de qual­quer outro mo­vi­mento fe­mi­nino pela sua im­por­tância nu­mé­rica, pelo re­cru­ta­mento jovem e ope­rário, pelo fun­ci­o­na­mento ri­go­roso e de­mo­crá­tico, pela ori­en­tação mar­xista. Tal como acon­tecia aos ele­mentos da Co­muna, a mai­oria das mu­lheres mais des­ta­cadas da União tinha li­ga­ções à As­so­ci­ação In­ter­na­ci­onal dos Tra­ba­lha­dores (AIT) e es­tava as­so­ciada ao mo­vi­mento so­ci­a­lista francês, in­te­grando as suas di­versas cor­rentes po­lí­ticas.

Nathalie Le Mel e Eli­sa­beth Dmi­trieff são as di­ri­gentes que mais di­na­mi­zaram a União. A pri­meira, com 45 anos, é ope­rária numa ofi­cina de en­ca­der­nação e aderiu à AIT em 1866, e na União ocupa-se prin­ci­pal­mente das ques­tões so­ciais. A se­gunda, com 20 anos, é uma re­vo­lu­ci­o­nária da secção russa da AIT. Meses antes, vi­si­tara Marx, em Lon­dres, e este envia-a a Paris como re­pre­sen­tante do Con­selho Geral da AIT. É pre­ci­sa­mente com a sua che­gada, no dia se­guinte à pro­cla­mação da Co­muna, que se ini­ciam as reu­niões pre­pa­ra­tó­rias que irão con­duzir à cons­ti­tuição da União das Mu­lheres, onde Dmi­trieff se ocupa das ques­tões po­lí­ticas, e em par­ti­cular das me­didas so­ci­a­listas contra a ex­plo­ração do tra­balho das mu­lheres.

No Jornal Ofi­cial de 11 de Abril é pu­bli­cado um ex­tenso Apelo às Ci­dadãs: sem di­reitos não que­remos de­veres, que­remos tra­balho sem ex­plo­ra­dores e sem pa­trões – o meio para de­fender estes ob­jec­tivos é lutar contra o ini­migo. Ter­mina com um con­vite para a reu­nião onde se de­ci­dirá da for­mação dos Co­mités de Ar­ron­dis­se­ments (di­visão ad­mi­nis­tra­tiva ur­bana) e da or­ga­ni­zação do mo­vi­mento de mu­lheres para a de­fesa de Paris. Subs­crevem-no: Nathalie Le Mel (en­ca­der­na­dora), Eli­sa­beth Dmi­trieff, Mar­ce­line Le­loup (cos­tu­reira), Blanche Lefèvre (la­va­deira), Aline Jac­quier (en­ca­der­na­dora), Thérèse Collin (sa­pa­teira) e Aglaë Jarry. Nessa noite é for­mal­mente cons­ti­tuída a União das Mu­lheres para a De­fesa de Paris e o Cui­dado dos Fe­ridos e são es­ta­be­le­cidos os 20 Co­mités de Dis­trito.

Três dias de­pois, os es­ta­tutos subs­critos pelas «ci­dadãs de­le­gadas mem­bros do co­mité cen­tral das ci­dadãs, Adé­laïde Va­lentin, Noémie Col­leuille, Mar­cand, Sophie Graix, Jo­séphine Pratt, Cé­line Del­vain­quier, Aimée Del­vain­quier, Eli­sa­beth Dmi­trieff», todas ope­rá­rias à ex­cepção de Dmi­trieff, são pu­bli­cados em di­versos jor­nais.

É de­fi­nido o dever ime­diato: com­bater pela «grande causa do povo, pela Re­vo­lução», «re­sis­tência co­lec­tiva de toda a po­pu­lação» para as­se­gurar o triunfo da luta para a «re­no­vação so­cial com­pleta, as­se­gu­rando o rei­nado do tra­balho e da jus­tiça». Mas so­bre­tudo, se to­marmos em con­si­de­ração as pro­nun­ci­a­ções que até aí se re­cla­mavam do fe­mi­nismo, uma nova e ex­plí­cita re­fe­rência à igual­dade – quem se apro­veita do an­ta­go­nismo (criado e man­tido) entre homem e mu­lher?

«A Co­muna re­pre­senta o grande prin­cípio pro­cla­mando a eli­mi­nação de todo o pri­vi­légio, de toda a de­si­gual­dade – e por isso, deve ter em conta as re­cla­ma­ções justas de toda a po­pu­lação, sem dis­tinção de sexo – dis­tinção criada e man­tida pela ne­ces­si­dade de an­ta­go­nismo sobre o qual se apoiam os pri­vi­lé­gios das classes go­ver­nantes».

O pro­grama da União exige a edu­cação das ra­pa­rigas e a sua for­mação pro­fis­si­onal, a edu­cação gra­tuita e laica para todas as cri­anças. As re­vo­lu­ci­o­ná­rias pe­ti­ci­onam à Co­muna a cri­ação de or­fa­natos laicos, de cre­ches para ajudar as mães sol­teiras a não cair na pros­ti­tuição, e a subs­ti­tuição das re­li­gi­osas dos hos­pi­tais e das pri­sões. A pros­ti­tuição con­si­de­rada como «forma de ex­plo­ração co­mer­cial de cri­a­turas hu­manas por ou­tras cri­a­turas hu­manas» é ba­nida pela Co­muna.

O tra­balho das mu­lheres

Em França, as mais ex­plo­radas dos ex­plo­rados re­pre­sen­tavam 33 por cento da po­pu­lação ac­tiva, con­cen­tradas nas ma­nu­fac­turas têx­teis, ao do­mi­cílio e nas ofi­cinas, em ou­tras ac­ti­vi­dades ar­te­sa­nais, como o cal­çado e a en­ca­der­nação, e também nas minas ou na cons­trução do ca­minho-de-ferro, com jor­nadas de tra­balho de 14 horas, ou mais, em con­di­ções sub-hu­manas e com sa­lá­rios de mi­séria. Uma mi­séria negra que só a pros­ti­tuição oca­si­onal po­deria ate­nuar…

O Pro­grama da União des­taca o valor so­cial e eco­nó­mico do tra­balho das mu­lheres e a for­mação de co­mités lo­cais para or­ga­nizar o mo­vi­mento de mu­lheres na de­fesa de Paris.

A Co­missão Exe­cu­tiva do Co­mité Cen­tral da União foi eleita pelas re­pre­sen­tantes de cada Dis­trito, e foram re­cru­tadas mais de mil so­cor­ristas (em­pre­gadas de am­bu­lância) que ga­nhavam o mesmo sa­lário e a mesma ração que os ho­mens da Guarda Na­ci­onal – sa­lário igual para tra­balho igual, o mesmo prin­cípio que fixou o sa­lário nas ofi­cinas mu­ni­ci­pais e de pro­fes­soras e pro­fes­sores.

Para as me­didas de pro­tecção so­cial e do tra­balho das ope­rá­rias Éli­sa­beth Dmi­trieff tem a ajuda do de­le­gado eleito da Co­missão do Tra­balho e do Co­mércio da Co­muna, Léo Frankel, ou­rives, sin­di­ca­lista francês de origem hún­gara e membro da AIT.

Apoi­ando-se mu­tu­a­mente, es­crevem o re­la­tório «O tra­balho da mu­lher sendo o mais ex­plo­rado, a sua re­or­ga­ni­zação ime­diata é ur­gente». Em Maio, a União das Mu­lheres inicia uma acção de or­ga­ni­zação do tra­balho das mu­lheres, para re­tirar «o tra­balho do jugo do ca­pital» com a cons­ti­tuição das «as­so­ci­a­ções pro­du­tivas li­vres», a «di­mi­nuição das horas de tra­balho», cui­dando da su­pressão de toda a con­cor­rência entre os «tra­ba­lha­dores dos dois sexos» tendo em conta o seu in­te­resse comum.

Ambos con­si­deram que or­ga­ni­zação de classe das tra­ba­lha­doras está ainda numa fase em­bri­o­nária e di­rigem apelos às ope­rá­rias para a sua sin­di­ca­li­zação.

Nas bar­ri­cadas contra a in­vasão

No dia 20 de Maio, foram afi­xados os apelos para a «for­mação de­fi­ni­tiva dos sin­di­catos fe­mi­ninos», a União con­vida as ope­rá­rias de todas as cor­po­ra­ções para a reu­nião de cons­ti­tuição dos sin­di­catos das tra­ba­lha­doras. A reu­nião é mar­cada para o dia se­guinte… mas co­meçam os com­bates contra as tropas de Ver­sa­lhes, e Dmi­trieff teria de lançar outro apelo: «É pre­ciso reunir todas as mu­lheres, às bar­ri­cadas!»

A de­fesa das bar­ri­cadas de Clig­nan­court, de Ba­tig­nolles, rua Lepic, Ra­cine, École de Mé­de­cine, da Place Blanche e de Pi­galle, es­teve a cargo das mu­lheres do Co­mité de Vi­gi­lância das Ci­dadãs, dos Co­mités de Dis­trito e do Co­mité Cen­tral da União das Mu­lheres, entre elas, Anne Pous­to­voï­tova, Béa­trix Ex­coffon, Blanche Le­febvre, Eli­sa­beth Dmi­trieff, Louise Mi­chel, Mal­vina Pou­lain, Mar­gue­rite Di­blanc e Nathalie Le Mel.

A 25 de Maio, de­pois de a Guarda Na­ci­onal ter aban­do­nado a bar­ri­cada da rua Châ­teau-d’Eau, um ba­ta­lhão de 52 mu­lheres ar­madas re­tomou o com­bate com gritos «Viva a Co­muna!». Cer­cadas e de­sar­madas foram de ime­diato fu­zi­ladas. A 600 me­tros, na bar­ri­cada Folie Mé­ri­court, ou­tras 50 com­ba­tentes foram também cha­ci­nadas.

O pe­ríodo de 21 a 28 de Março fi­cará co­nhe­cido pela «se­mana san­grenta», ho­mens e mu­lheres, cri­anças e ve­lhos de­fendem nas úl­timas bar­ri­cadas a ban­deira ver­melha da Co­muna, e só os/​as ope­rá­rios/​as se man­ti­veram fiéis até ao fim.

Foi o mas­sacre sis­te­má­tico dos re­vo­lu­ci­o­ná­rios – são mortos mais de 20 mil. Não che­gava vencer a in­sur­reição, era pre­ciso cas­tigar e fazer da re­vo­lução um banho de sangue. A bur­guesia eu­ro­peia aplaude…

Adolphe Thiers, chefe do go­verno de Ver­sa­lhes, pro­clama: «Agora o co­mu­nismo está morto para sempre!». Thiers, o car­ni­ceiro do povo de Paris, dos com­bates san­grentos, das exe­cu­ções su­má­rias, das pri­sões ar­bi­trá­rias, dos pro­cessos ex­pe­ditos de con­de­nação à morte, das de­por­ta­ções… Foram a jul­ga­mento cerca de mil mu­lheres, a mai­oria foi con­de­nada, mais de 750 eram ope­rá­rias.

O ódio da bur­guesia à Co­muna de Paris co­meçou no pró­prio dia da sua pro­cla­mação, com toda a ar­ti­lharia de cúm­plices, jor­na­listas, pa­dres, in­te­lec­tuais, es­cri­tores/​as e ha­bi­tuais fa­ze­dores de opi­nião. Os es­cri­tores no­tá­veis po­si­ci­o­naram-se todos de forma aberta e vi­ru­lenta contra a Co­muna, à ex­cepção de J. Vallès, A. Rim­baud, P. Ver­laine e Vil­liers de l’Isle Adam. Nos dis­cursos anti-Co­muna as me­tá­foras mais usuais aludem à bes­ti­a­li­zação e à do­ença – «ani­mais fe­rozes», «urros sel­va­gens», «epi­lepsia so­cial», «febre epi­dé­mica»… Com ima­gens es­sen­ci­a­listas e pa­to­ló­gicas pre­ten­deram des­truir o sen­tido do acon­te­ci­mento, re­tirar-lhe o con­teúdo ide­o­ló­gico, des­po­li­tizá-lo.

E às mu­lheres, foi re­ser­vado um des­taque par­ti­cular: elas foram cons­tan­te­mente en­xo­va­lhadas, com­pa­radas a «lobas», «hi­enas», «fa­ná­ticas», «imagem do crime e do vício», «bê­bedas, de­bo­chadas, vi­ragos, ga­tunas, de má vida…». As «pé­tro­leuses», mu­lheres in­cen­diá­rias, ar­madas de ar­chote numa mão e de va­silha com pe­tróleo na outra, foi abun­dan­te­mente pu­bli­cada na im­prensa, uma imagem in­ven­tada pela ca­lúnia re­ac­ci­o­nária que também serviu para es­conder o efeito des­tru­tivo das bombas in­cen­diá­rias do exér­cito de Ver­sa­lhes, e para jus­ti­ficar o mas­sacre e a con­de­nação de muitas ope­rá­rias.

Os en­si­na­mentos

Ao pri­meiro go­verno ope­rário da His­tória coube o «mé­rito de ter to­mado as pri­meiras me­didas ver­da­dei­ra­mente a favor da eman­ci­pação da mu­lher» (Con­fe­rência do PCP «A Eman­ci­pação da Mu­lher no Por­tugal de Abril», 1986).

O exemplo do pri­meiro go­verno ope­rário au­ten­ti­ca­mente po­pular foi par­ti­cu­lar­mente va­lo­ri­zado por Marx, En­gels e Lé­nine quanto à questão do Es­tado. A Co­muna provou que «a classe ope­rária não pode sim­ples­mente tomar posse da má­quina do Es­tado [que en­contra] mon­tada e pô-la em mo­vi­mento para os seus ob­jec­tivos pró­prios» (K. Marx, F. En­gels, Ma­ni­festo do Par­tido Co­mu­nista, Pre­fácio à Edição Alemã, 1972) – é ne­ces­sário criar um novo tipo de Es­tado, «trans­formar os meios de pro­dução, a terra e o tra­balho, em ins­tru­mentos do tra­balho livre e as­so­ciado».

Lé­nine re­fere a falta de uma «or­ga­ni­zação po­lí­tica séria do pro­le­ta­riado», sem grandes sin­di­catos ou as­so­ci­a­ções co­o­pe­ra­tivas, e so­bre­tudo a falta de tempo – a Co­muna só teve tempo para pensar na sua pró­pria de­fesa. Todas as me­didas de ca­rácter prá­tico e toda a le­gis­lação so­cial da Co­muna, cor­res­pon­deram ao que de­signou por «pro­grama mí­nimo do so­ci­a­lismo» (A Co­muna de Paris e as Ta­refas da Di­ta­dura De­mo­crá­tica, 1905).

Tal como a eman­ci­pação da classe ope­rária não po­derá ter lugar no quadro do ca­pi­ta­lismo (Karl Marx), também «a eman­ci­pação da mu­lher, como a de todo o gé­nero hu­mano, só se tor­nará re­a­li­dade no dia em que o tra­balho se eman­cipar do ca­pital» (Clara Zetkin).